EVIDENCIA CIENTÍFICA, PSICANÁLISE E AUTISMO
Em resposta à campanha da Aprenem
Dr. Arseni Maxímov
Recentemente, a associação Aprenem de pais de crianças com autismo lançou uma campanha para denunciar a psicanálise como um método pretensamente não corroborado pela evidência científica e promover intervenções comportamentais “cientificamente aprovadas”, especialmente as baseadas no método ABA
Além de atacar a liberdade dos pais de escolher o tipo de terapia de seus filhos, que jáparece inaceitável em uma sociedade democrática, Aprenem parte de um mal entendido sobre o que é a psicanálise contemporânea, e baseiam seus argumentos em publicações que, na realidade, não demonstram tão univocamente a suposta superioridade dos métodos comportamentais.
Os autores da campanha passam longe das considerações éticas e, aparentemente, negam o direito de existir aos modos de entender a natureza do ser humano e de tratar seu mal-estar que não venham do campo científico. Cabe dizer que, ainda que os psicanalistas não dediquem seus maiores esforços a demonstrar a evidência científica de seu método, é possível encontrar muitos estudos que a demonstram. A eles nos referiremos mais adiante.
Para contribuir com um debate mais rigoroso, no presente artigo nos proporemos a interrogar algumas ideias comuns sobre a psicanálise e a evidência científica, e revisar os argumentos que Aprenem utiliza para defender sua causa.
Não existe evidência de eficácia da psicanálise?
Hoje é um lugar comum dizer que a psicanálise é um método obsoleto não baseado em nenhum tipo de evidência cientifica. É certo que os psicanalistas tem pouca crença, e não sem razão, na avaliação estatística, mas isso não significa que não existam evidências do poder de seu método.
Em sua revisão dos estudos sobre a psicanálise, o investigador americano Dr. Jonathan Shedler (2010) escreve: “Há uma crença que aos conceitos e tratamentos psicodinâmicos [2] lhes falta corroboração empírica ou que outras formas de tratamento são mais eficazes. Esta crença já parece andar por si só. Os acadêmicos a repetem uns a outros, assim como os médicos ou os políticos responsáveis pela saúde. Com cada reiteração sua credibilidade aumenta. Chega a um ponto em que parece pouco necessário interrogá-la ou revisá-la porque ‘todo mundo sabe que é assim’. A evidência científica diz outra coisa: um número considerável de estudos sustenta a eficácia da terapia psicodinâmica”.
O Dr, Glen Gabbard, investigador e professor de psiquiatria do Baylor College of Medicine, afirma também que “existe um tipo de preconceito contra a terapia dinâmica, como se não houvessem provas controladas aleatorizadas que demonstrem sua eficácia” (Kaplan, 2011).
Então, se queremos falar em termos de evidência, não é preciso ir muito longe para encontrar uma quantidade de estudos que demonstrem que os métodos orientados pela psicanálise são eficazes tanto para adultos [3], como crianças com vários diagnósticos [4], incluindo o autismo [5].
Também existem estudos que comprovam que em muitos casos os benefícios da psicanálise e da terapia psicodinâmica são iguais ou superiores aos das terapias cognitivo-comportamentais [6]. Em particular, há estudos que concluíram que em certo grupo de pacientes o efeito alcançado na terapia psicodinâmica é mais duradouro e inclusive aumenta um tempo depois de acabar o curso da terapia [7], enquanto o efeito de outras terapias vai diminuindo [8]. Uma revisão recente (Gaskin, 2012) corrobora que “os efeitos da terapia psicodinâmica se mantém depois da finalização do tratamento” e que “a terapia psicodinâmica é tão eficaz quanto outras”.
Além disso, Levy et al. (2006) e Clarkin et al. (2007) demonstraram que só a terapia psicodinâmica, e não a comportamental dialética, produz mudanças em “subjacentes mecanismos psicológicos”, ou “processos intrapsíquicos”, que “exercem a mudança dos sintomas”. Shedler (2010) sugere, por sua parte, que estas mudanças mais profundas podem contribuir para a longa duração dos efeitos produzidos pela terapia psicanalítica.
Também é muito curioso que, segundo o mesmo autor, “os ingredientes ativos [os que produzem o efeito benéfico] de uma terapia não são necessariamente os que supõem a teoria ou o modelo terapêutico” (Shedler, 2010). Em outras palavras, quando se demonstra que uma terapia tem êxito, frequentemente não se sabe se o tem pelo específico e novo que aportam seus criadores ou por algum outro elemento que pode ser emprestado de outro método.
As análises dos “ingredientes ativos” de várias terapias trouxeram muitas surpresas. Num estudo das terapias cognitivas se demonstrou que o componente que lhes brindava eficácia não era, como pensavam deus defensores, o componente propriamente cognitivo (Kazdin, 2007). Vários autores comprovaram que o que contribuía significantemente ao efeito benéfico tanto das terapias cognitivas como das psicodinâmicas era a aplicação por parte do terapeuta dos métodos psicodinâmicos, enquanto o componente cognitivo contribuía pouco, nada ou inclusive diminuía a probabilidade de êxito [9].
Mais argumentos errôneos?
Outros mal-entendidos sobre a psicanálise, dos quais a campanha de Aprenem faz uso, são, por um lado, que os psicanalistas consideram que as causas do autismo são unicamente psíquicas e, por outro, que culpam os pais pelo mal-estar de seus filhos. Ainda que faça mais de meio século que alguns autores pensavam que a causa do autismo se encontrava na relação entre mãe e filho, a psicanálise contemporânea sustenta ideias muito distintas (Álvarez, 1992).
Por um lado, os psicanalistas hoje não afirmam com clareza conhecer a causa do autismo. Não se sabe com certeza se as causas são psíquicas ou não. Mas sabemos que não existe evidência sólida que assegure que sejam hereditárias ou biológicas, e que, por tanto, que não são psíquicas. Ao contrário do que se crê, os estudos genéticos dizem que a causa do autismo é fundamentalmente desconhecida (Ansermet & Giacobino, 2012). Nenhuma mutação (Neale et al., 2012) nem “nenhuma perturbação de um gene individual nem de um conjunto de genes pode com fiabilidade predizer a condição [o autismo]” (State & Levitt, 2011).
O curioso é que Aprenem assevera que se a causa do autismo é genética, então deve ser tratado com métodos comportamentais. A conexão entre a premissa e a conclusão desta frase nos parece verdadeiramente enigmática. Com o mesmo fundamento lógico se pode defender que se a causa é genética, então o melhor tratamento é a massagem ayurvédica.
Seja qual for a causa, não faz falta sabê-la para tratar os sintomas das crianças com autismo. Os psicanalistas o fazem, assim como comportamentais e outros profissionais, sem que nenhum deles saiba com certeza a causa dos sintomas que trata. Nessas circunstâncias, qualquer pretensão de ser mais científico que outros cai no autoengano.
Por outro lado, é possível ler em diversos lugares [10] que os analistas não culpabilizam os pais senão que lhes ajudam a descartar a culpa com a qual muitos chegam à primeira consulta. E, é claro, nada acredita na teoria das “mães geladeira”, que, ao contrário do que se costuma dizer, não foi criada por psicanalistas.
A propósito de outros argumentos da campanha, cabe dizer que são igualmente questionáveis. Sem ir mais longe, a afirmação de que “a psicanálise é o modelo preferível e mais dotado economicamente do sistema de saúde pública na atenção precoce e assistência infanto-juvenil das pessoas com TEA” na Catalunha, e que as praticas comportamentais “são minoritárias”, é no mínimo um exagero.
Entretanto, não existem estatísticas oficiais sobre a formação dos profissionais que trabalham nos centros mencionados. Assim, não entendemos por que Aprenem sustenta que 80% desses profissionais se orientariam pela psicanálise. Segundo nossas informações, só há dois ou três centros de atenção precoce unicamente psicanalíticos, e outros tantos comportamentais. O resto não se inclina, segundo parece, a nenhum dos dois lados, incorporando abordagens muito diversas. Não é assim, diga-se de passagem, quando se trata dos centros hospitalares de referência, nos quais a abordagem de suas equipes psiquiátricas, por exemplo, é fundamentalmente cognitiva-comportamental.
Finalmente, um erro comum é pensar que a psicanálise com crianças é igual a dos adultos. Há inclusive pessoas que acreditam que um psicanalista deita a criança no divã e lhe faz associar livremente e contar seus sonhos. Em realidade, muitas vezes o trabalho analítico com crianças, individual ou em grupo, consiste na brincadeira ou outras atividades que o pequeno paciente aporta. Certamente, diversos estudos comprovam que o brincar terapêutico promove o desenvolvimento da linguagem, a simbolização e a capacidade de se relacionar e se comunicar com o outro fora da brincadeira [11].
É tão certa a evidência dos métodos comportamentais?
Vamos agora à evidência na que se baseia a afirmação da Aprenem, segundo a qual o único método cientificamente aprovado para o tratamento de crianças com autismo são “intervenções comportamentais baseadas no modelo de análise aplicada do comportamento”.
Revisamos os guias de boas práxis a que se refere Aprenem no texto de sua campanha e gostaríamos de citar aqui o que uma delas [12] diz sobre a evidência da análise aplicada do comportamento, mais conhecido como método ABA, de Lovaas:
- “Todos os estudos” revisados [13] deste método tinham “defeitos metodológicos consideráveis”;
- “A revisão concluiu que não se pode estabelecer uma relação causal entre nenhum programa particular de intervenção comportamental intensiva e o alcance de um de um funcionamento normal”;
- “O programa de Lovaas não deve ser apresentado como uma intervenção que conduz ao funcionamento normal”;
- “Uma investigação compreensiva de literatura não encontrou nenhuma evidência de boa qualidade para outras intervenções comportamentais intensivas”.
Assim, segundo este mesmo guia, a evidência do método ABA e de outras intervenções comportamentais é claramente duvidosa. Resulta difícil acreditar, mas é a mesmaAprenem quem aporta este guia com o qual se desacreditam seus próprios argumentos.
Pode-se agregar que os críticos dos estudos do método ABA afirmam que estes “não são um experimento verdadeiro”, que “é impossível determinar o efeito” da intervenção em questão (Schopler et al., 1989) e que é preciso abordar esses estudos com “um ceticismo são” (Gresham, MacMillan, 1998).
Também se pode pontuar que o método ABA implica entre 20 e 40 horas semanais de intervenções de especialistas com participação dos pais. Com uma dedicação tão excepcional, que método não daria um resultado significante!
Em definitiva, pode-se dizer que enquanto as terapias comportamentais se consideram mais ou menos eficazes para modificar sintomas específicos de maneira muito pontual e localizada [14], elas não podem se sustentar como um método integral nem único para tratar uma criança com autismo.
Evidência versus ética
“Que obra prima é o homem...”
W. Shakespeare.
Gostaríamos de, finalmente, interrogar a ideia mesma da evidência científica em sua aplicação à psicoterapia e explicar por que os analistas desconfiam dela. A razão é bem simples: não existe nenhuma forma satisfatória de quantificar ou medir o mais próprio do ser humano e sua experiência. São coisas que não se deixam avaliar por meio da cifra, evitam qualquer tentativa de generalização.
É algo muito característico de nossa época esperar que a ciência dê uma medida de tudo. Entretanto se supõe, para nossa surpresa, que algumas coisas não podem ser medidas. Não ocorrerá a ninguém, por exemplo, estabelecer um critério científico para distinguir entre uma obra de arte genial e uma medíocre. Tampouco conseguiram criar um método científico para escrever poesia ou gerar, por mais matemáticas que sejam, cantatas de Bach. Encontramo-nos, então, diante de um paradoxo: se assume que as criações da psique humana estão fora do alcance do método científico, mas a psique mesma e suas outras manifestações não.
Nós sustentamos, ao contrário, que a psique também está deste lado – do lado do inefável, do enigmático, do singular. De certo modo, todo sintoma é uma criação e toda criação é sintoma. Assim, tratar de investigar a psique com questionários, provas e estatísticas é o mesmo que aplicar as leis de Newton e a lógica linear a um problema de física quântica.
O mesmo acontece quando alguém se põe a medir os efeitos da psicoterapia: às vezes se capta algo, claro, mas o mais importante escapa. Aqui a resposta dos comportamentais é fácil: o que não se capta por avaliação científica, não existe. Limitam desta forma seu trabalho ao que se pode captar. Uma intervenção comportamental pode ter por fim ensinar à criança autista uma coisa muito concreta, como dizer “Olá” e “Adeus” quando corresponde. O resultado será nem mais nem menos este, que, talvez, sem dirigir-se realmente ao outro, a criança dirá “Olá” e “Adeus” como lhe ensinaram. Com certeza, um resultado assim poderá ser avaliado e será possível demonstrar que a intervenção alcançou o que pretendia, seja qual for o valor deste alcance para a criança.
Pelo contrário, a psicanálise trabalha, em primeiro lugar, precisamente com o que escapa à quantificação. Seu objetivo consiste em mudanças subjetivas profundas, o que torna quase impossível avaliar por meio de métodos científicos o alcance de seus efeitos. Isso não impede que algumas destas mudanças profundas produzam também efeitos visíveis que, de alguma maneira, poderão também ser avaliadas por aqueles que sustentam este empenho. A criança tratada por um psicanalista também pode chegar a dizer “Olá”, mas neste caso é muito mais provável que o faça porque quer dizê-lo. Para um comportamentalista, dizer “Olá” seria um fim em si mesmo, para um analista é um efeito colateral de mudanças mais significativas.
Para dizer de outro modo, a terapia comportamental só trata os sintomas superficiais, cuja desaparição ou modificação é fácil registrar como “êxito” da intervenção. O que não se registra em um estudo é que no lugar do sintoma eliminado virá outro novo, que pode ser ainda pior. Porque eliminar um sintoma não significa solucionar o conflito que nele se manifesta – isto seria mais como tirar de uma pessoa inválida as muletas crendo que épor culpa delas que não pode caminhar. Pois os psicanalistas pretendem tratar não tanto os sintomas separadamente como o conflito subjacente. É verdade que não sabemos a causa do autismo, mas a psicanálise ensina sobre os mecanismos e a lógica de formação de seus sintomas. E é neste nível mais profundo onde atua.
Alguém pode perguntar: Se os psicanalistas não se orientam pela evidência científica, como se orientam então? Orientam-se pela ética. Os critérios éticos são muito mais importantes que outros. Importa o respeito pelo sujeito, por sua dignidade, sua liberdade de escolha e de resposta, e a não imposição. Pontuamos que precisamente esses critérios éticos são, com frequência, deixados de lado na busca de evidências.
O método ABA, com suas aspirações de evidência, parece tratar as crianças autistas como se fossem pouco diferentes de animais para domesticar. Não é surpreendente, por outro lado, pois as técnicas comportamentais proveem de experimentos com animais. Tratando de alcançar uma “norma” imposta pelo método, forçam a criança a fazer coisas que não quer fazer, dão prêmios se faz o que lhe demandam, castigam se não, ou impedem sem reservas “os comportamentos aberrantes”, que em muitos casos são as soluções – as muletas – que a criança encontrou, e não o problema mesmo. Aliás, algo parecido afirma o mesmo guia que usa Aprenem: “os profissionais devem saber que alguns comportamentos aberrantes podem representar a estratégia da criança para lidar com suas dificuldades e circunstâncias individuais” [15].
Para Concluir
Toda eleição de método é, em primeiro lugar uma escolha ética. Aprenem nos vende um método, mas o método não vai sozinho. Junto dele vem os valores e as escolhas éticas implícitas que eles nos fazer aceitar como padrão. Apresentam sua causa como algo natural, evidente: Supõe-se que todo mundo está de acordo que o melhor critério para sustentar uma prática terapêutica é a evidência empírica e o único enfoque aceitável sobre o ser humano é o científico. Quais são as escolhas que comporta o método e das que Aprenem evita falar?
Escolhem a evidência à custa da ética; escolhem um enfoque que reduz o ser humano ao visível, ao facilmente avaliável, ou seja, aos comportamentos, e ignoram o complexo, o profundo, o invisível; escolhem o generalizável, o “objetivo” no lugar do subjetivo e singular de cada um; escolhem o paradigma médico que afirma a existência da norma e a patologia e a necessidade da “correção” do “anormal”, que muitas outras abordagens questionam; escolhem aplicar nos seres humanos técnicas utilizadas no treinamento de animais; escolhem se apoiar nas ciências naturais e não nas humanas; escolhem a filosofia positivista e pragmática como se não existisse nenhuma outra.
Essas são só algumas das escolhas que Aprenem e seus defensores fazem, talvez inclusive sem dar-se conta. Se querem fazê-las, bem, que as façam, mas que sejam conscientes das consequências de sua eleição e que respeitem o direito de fazer outro tipo de escolha.
Barcelona, 3 de Abril de 2016
Tradução: Anna Carolina Nogueira.
[1] Applied Behavioural Analysis (análise comportamental aplicada).
[2] As terapias psicodinâmicas são terapias baseadas na psicanálise.
[3] Bateman & Fonagy, 2008; Cogan & Porcerelli, 2005; Knekt et al., 2008; Leichsenring & Rabung, 2008; Leichsenring, Rabung & Leibing, 2004; Milrod et al., 2007; Roseborough, 2006.
[4] Fonagy & Target, 1996; Midgley & Kennedy, 2011; Schachter & Target, 2009; Windaus, 2006; Winkelmann et al., 2000
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[8] Gloaguen et al, 1998; Hollon et al., 2005; de Maat et al., 2006
[9] Ablon & Jones, 1998; Castonguay et al., 1996; Hayes, Castonguay, & Goldfried, 1996; Jones & Pulos, 1993
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